domingo, 26 de abril de 2015

Um texto do Fernando Cabral Martins para a exposição dos ícaros

EXORCISMO


À primeira vista, estes anjos são terrenos. Começam por não ser anjos, porque os ícaros são seres humanos. Mas passaram por uma metamorfose em anjos. As asas já fazem parte do seu corpo, o voo e a queda tornaram-se uma dança de cores. E têm sexo, estes anjos que são mulheres e homens. A melancolia, por isso, não os atinge. Reina entre eles uma saudável loucura, uma alegria desatada. Habitam uma versão floresta-virgem do paraíso, isto é, daquele mundo aonde sobem os homens que se tornam imortais quando voam.  

Se revirmos os anjos do disco de José Afonso que João de Azevedo pintou nos anos 70, Com as Minhas Tamanquinhas, percebemos que eles eram uma imaginação feliz, porque então tudo fazia sentido. Hoje, os ícaros estão remontados, é como se tivessem voltado a voar depois de se terem despedaçado no chão. A sua energia é extraordinária mas sem esperança. Os ícaros transformam-se sempre que caem. Voam, mudam, caem, tornam a levantar voo e mudam outra vez. E as cores voam com eles.
Pintar ícaros é pintar a aventura essencial, pelo que as suas são as cores puras. No teatro das operações de busca do que não existe – e, portanto, não se pode encontrar –, o que é importante é a pureza das cores e do movimento.
Os anjos-ícaros de João de Azevedo estão ampliados, fora de foco. As suas cores transtornadas espantam e exaltam, e a sua explosão é uma libertação. Há uma violência qualquer que as arrasta – nós sentimos-lhe o rumor, o tremor. No mundo à volta das pinturas também não há mais nada a não ser uma persistente violência. Estamos sob uma redoma de protecção, que é muito parecida com um cogumelo atómico. Ninguém faz ondas demais, para que alguém não resolva usar a bomba suja. Daquelas que rapam um bocado do planeta. Mas esta redoma sugere um adormecimento da pulsão de morte, à escala colectiva e permanente. E ninguém sabe se tal coisa é possível, não parece nada, porque a violência progride sempre até ao limite. Ainda agora, pelo youtube, as cores mais fortes, o laranja, o preto, esfaqueiam a plena luz do deserto.

Estes homens e mulheres alados são a apoteose de uma experiência da actualidade. Não lhes interessa a moral, que é aquele conjunto de regras que servem para nos defendermos do que é obscuro e instável. Para a sua inteligência, a queda é a única moeda que paga o voo. 
Afinal, isto pode ser trágico, mas – deve ter sido o que Ícaro ele-próprio pensou enquanto caía no mar – um instante no cimo do mundo é mais do que um século em cima dos pés.
Estes anjos convocam a violência das cores como o último exorcismo.


Fernando Cabral Martins, Lisboa, Abril 2015

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