domingo, 26 de abril de 2015

O texto do Yves Depelsenaire

Notas para Ícaro

O texto de Ovídio (Metamorfoses, VIII, 185-235) nunca deixou de inspirar pintores e escultores da antiguidade aos nossos dias. Bruegel, Hans Bal, Goltzius, Rubens, Leonard, Saraceni, Do Sanfriano, Canova, Le Brun, Rodin, Chagall, Picasso, Matisse, Kiefer…
Este tema parece omnipresente na arte cristã, anjos, putti, querubins, serafins, anjos que tocam, anjos que anunciam, anjos rebeldes, anjos caídos.

O Eros grego, ou a Nike, que os romanos chamaram Victória (como a de Samotrácia) são também eles representados com asas. Há na arte um “combate com o Anjo”, ininterrupto.
O Angelus Novus de Paul Klee, acarinhado por Walter Benjamin, é o paradigma da modernidade, com a tempestade catastrófica do progresso que lhe sopra sobre as asas e o faz ficar de costas voltadas ao futuro.

Quando, no fim dos anos 70, João de Azevedo representa as asas do anjo nas duas páginas da capa do disco de José Afonso, essas asas representam as asas do desejo. As asas da revolução dos cravos. Traçam um arco que vai do Teorema de Pasolini em 1968 ao filme epónimo de Wim Wenders em 1987.

Hoje tememos para elas a mesma sorte das asas de Ícaro, derretidas pela sua própria chama. Como? Sucumbirão as asas do desejo demasiado cedo, como diria Mallarmé?
Não há no entanto outro caminho para se sair do labirinto do progresso, onde toda a humanidade se encontra encarcerada com Dédalo.
Não estará na pintura de João de Azevedo o sentido mais profundo do regresso dessas mesmas asas?


Yves Depelsenaire, Bruxelas, Abril 2015

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