Notas para Ícaro
O texto de Ovídio (Metamorfoses, VIII, 185-235) nunca deixou de inspirar pintores e escultores da antiguidade aos nossos
dias. Bruegel, Hans Bal, Goltzius, Rubens, Leonard, Saraceni, Do Sanfriano,
Canova, Le Brun, Rodin, Chagall, Picasso, Matisse, Kiefer…
Este tema parece omnipresente na arte cristã, anjos, putti, querubins, serafins, anjos que tocam, anjos que anunciam, anjos rebeldes,
anjos caídos.
O Eros grego, ou a Nike, que os romanos chamaram Victória
(como a de Samotrácia) são também eles representados com asas. Há na arte um
“combate com o Anjo”, ininterrupto.
O Angelus
Novus de Paul Klee, acarinhado por Walter Benjamin, é o paradigma da modernidade,
com a tempestade catastrófica do progresso que lhe sopra sobre as asas e o faz
ficar de costas voltadas ao futuro.
Quando, no fim dos anos 70, João de Azevedo
representa as asas do anjo nas duas páginas da capa do disco de José Afonso,
essas asas representam as asas do desejo. As asas da revolução dos cravos.
Traçam um arco que vai do Teorema de
Pasolini em 1968 ao filme epónimo de Wim Wenders em 1987.
Hoje tememos para elas a mesma sorte das asas de
Ícaro, derretidas pela sua própria chama. Como? Sucumbirão as asas do desejo
demasiado cedo, como diria Mallarmé?
Não há no entanto outro caminho para se sair do
labirinto do progresso, onde toda a humanidade se encontra encarcerada com
Dédalo.
Não estará na pintura de João de Azevedo o sentido
mais profundo do regresso dessas mesmas asas?
Yves Depelsenaire, Bruxelas, Abril 2015
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