ALGUMA
APRESENTAÇÃO, DOS ÍCAROS E MINHA
A capa do disco Com as Minhas Tamanquinhas foi
desencadeada por um telefonema do Zeca para mim, então em Roma, trauteando os
primeiros versos: “A fadiga é um dom da natureza, Chiça!”. Foi com estes
primeiros versos trauteados ao telefone que, comovido pelo convite a fazer essa
capa, me desenvencilhei, como pude, trabalhando sobre o mito do Ícaro, da
Utopia. Utopia andante, que era como eu via a revolução em curso, um convite a
sonhar mais alto, pisar o impossível, acreditar nisso, como em tantos, nós
acreditávamos. Esta capa vem daí: sonhar alto, sonhar mais longe.
Desde há muitos anos, desde a minha mais
tenra adolescência, que para mim o Zeca era um peixe graúdo do nosso povo
português, um corajoso que pela poesia e pelo canto nos encorajava. No tempo do
salazarismo ela era, com a sua voz de rouxinol, um ícaro, que voava alto. Mais
tarde apercebi-me, conhecendo-o, que era também um teso, um comité central dele
próprio, quando percebi em profundidade como não se deixou envenenar nas tricas
do pós-25 de Abril, que tanto dividiu o nosso povo. A doença vergou-lhe o
corpo, a voz, mas não o espírito; a prova disso é que ele é ainda um peixe
graúdo do nosso povo. No dia do seu funeral eu vivia em Maputo, para onde fui
trabalhar também à pala do Zeca. Organizámos uma bela jantarada, como se
estivéssemos com ele, mas sem ele.
Custou-me imenso, nestes últimos meses,
voltar à capa de As Minhas Tamanquinhas.
Sempre considerei esta capa como o meu melhor cartão-de-visita, sempre à boleia
do Zeca, e com ele me comovo ainda hoje, como peixe miúdo do nosso povo que
sou. Comecei a trabalhar nisso, punha a música dele e não resistia a chorar.
Eram as ondas da voz e da música que me esmagavam. Avancei nestes trabalhos
evitando a sua música e sua voz, batendo-me sozinho e em silêncio.
O resultado, sempre à boleia do Zeca, está
nesta exposição. Aqui se encontram também ícaras, mulheres voando, porque se
bem me lembro no tempo passado os ícaros eram sempre homens, pai e filho, não
havia mulheres. Agora já há, ou passaram a existir, depois do 25 de Abril, como
na canção da Teresa Torga. Pelo menos a isso chegámos, depois do 25 de Abril.
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